domingo, 10 de maio de 2009

O dia em que há luz na fotografia...

É sempre de desconfiar dos dias "de" qualquer coisa. Em regra servem para abrir o consumo imediato. Logo: é de pôr logo a mão no bolso. Os dias "de" são sempre homenagens piegas ou louva minhas a causas perdidas.

Não sabia mas também já temos Dia da Fotografia. Como é uma das belas artes que se coloca sempre entre a marginalidade e o chique cultural é possível enquadrar-se a si própria na lista dos dias festivos.

Se há forma de expressão que motiva a curiosidade humana é a fotografia. Desde a antiguidade que se sentiu a necessidade e o encanto de se poder fixar uma imagem para a eternidade, de se transformar em duas dimensões a vida no seu esplendor. Aristóteles, no século X, já descrevia o princípio da câmara escura e o napolitano Giovanni Della Porta, em 1558 na sua obra Maggie Naturalis, revelava detalhes sobre a construção e uso desse artefacto conhecido por sábios, artistas e... ilusionistas. Mesmo a teoria da Caverna de Platão contém em si o conceito da câmara escura.

Foram séculos a procurar uma técnica capaz de fixar uma imagem. Na Renascença a utilização da câmara escura estava banalizada por pintores. Leonardo da Vinci terá mesmo sido um usuário frequente da técnica de desenhar por cima da projecção de objectos sobre uma superfície lisa.

Só no início do século XIX é que a burguesia inglesa e francesa, quase simultaneamente, conseguiram fixar uma imagem para sempre. Foi em 1827 que Niépce conseguiu pela primeira vez fixar sobre uma base de verniz de asfalto, chamado de betume da Judeia, aplicada sobre vidro, endurecida e misturada com óleos, que ajudavam à fixagem, a primeira fotografia. O resultado era tosco e a fotografia precisou de 8 longas horas para ser impressionada na mistela mágica.

Foi uma pequena foto para o homem e uma grande janela que se abriu para a humanidade. O progresso técnico não mais parou e evoluiu a partir de então com grande rapidez.

Olhada ao princípio com desconfiança pelos artistas pintores, que viam na fotografia uma concorrência desleal, acabou por ser adoptada pela burguesia que finalmente tinha um meio acessível, credível e realista de mostrar a vida da classe em ascensão e de documentar para a eternidade os rostos e as cenas das famílias chiques.

O retrato foi o género mais popularizado e naquele onde se começaram por afirmar os verdadeiros fotógrafos. Uns fotografavam com os complexos da pintura, usando luz artificial em poses estereotipadas, outros afirmaram a fotografia com uma linguagem própria, usando com talento a luz ambiente, jogando com a cumplicidade para com os modelos, obtendo expressões vivas e personalizadas. Neste honroso exemplo está Félix Nadar.

A História da aventura fotográfica tem 150 anos onde há capítulos sobre mestres e autores, estilos e escolas completamente diferentes. A evolução da técnica, onde se destacam as emulsões e as câmaras, acabou por condicionar e fazer crescer a linguagem da própria fotografia. Quanto mais portáteis se tornaram as máquinas de fotografar, quanto mais sensíveis se tornaram as películas, melhor o fotógrafo conseguiu captar a alma humana.

A fotografia passou a fazer parte do património da humanidade. Nos primeiros anos  eram as imagens captadas em paragens longínquas que despertaram o sentido da aventura e das viagens. Depois as fotografias da Guerra da Crimeia mostravam a brutalidade da guerra como nunca antes tinha sido vista. A fotografia passou de espelho meu da burguesia para testemunho social. Denunciou injustiças, como o fez Lewis Hine com o seu ensaio sobre o trabalho infantil, mostrou a exclusão dos anos trinta da depressão nos Estados Unidos com os retratos de Dorothea Lange, ou deu a ver os bastidores da política no seu lado mais caricato, através do olhar de Salomon, um advogado berlinense que aos 45 anos descobriu a pequena câmara Ermanox (antecessora da Leica) e que com o seu conceito "candid câmera" abriu as portas nos anos vinte, para aquilo que hoje designamos por fotojornalismo moderno.

A democratização da fotografia chegou cedo com a instantânea da Kodak, um caixotinho que só tinha um disparador para "clikar". A Kodak fazia o resto. Desde então é que se sabe: hoje cada um de nós tornou-se num fotógrafo potencial, equipado a todo o momento com telemóveis que vêem, ligados online ao Mundo.

Ao mesmo tempo que se democratizou a fotografia ganhou estatuto de arte. Os surrealistas viram na fotografia um meio de expressão ideal para enquadrarem a realidade de outros ângulos, os construtivistas russos inventaram com ela uma nova estética (longe dos parâmetros académicos). O patamar da fama terá sido dado pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque quando nos anos quarenta passou a dispensar tanto espaço à fotografia como à pintura.

Sociólogos como Susan Sontag ou Roland Barthes teorizaram sobre a essência da fotografia, tentaram explicar por vezes o inexplicável: a capacidade de uma imagem fotográfica marcar em definitivo os afectos e a memória e essa estranha atracção que provoca na mais ingénua das mentes à mente mais elaborada.

Se para os muçulmanos ser fotografado é como ser roubado da alma, para as culturas mais ocidentais a fotografia contém também um significado sagrado. Quem não assistiu já a uma mãe embevecida a abrir a carteira e a mostrar o seu maior tesouro? A foto mais querida do filho...

Com betume da Judeia ou com pixels aos milhões, de caixote ou de telemóvel sofisticado, a essência da fotografia mantém-se desde os primórdios. O Homem encontrou na fotografia o meio ideal para se mostrar nas suas grandezas e misérias. Olhando para as imagens é ao espelho que as sociedades se revêem. Que seria da nossa vida sem esta memória colectiva ?

Luiz Carvalho, fotojornalista do Expresso


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